domingo, 3 de outubro de 2010

Sinespirina

Levantei atordoado correndo com aquele único objetivo desesperador. Havia uma porta à minha frente, que comecei a empurrar, rodeado pela escuridão. E do outro lado da porta tudo parecia estar iluminado...
OLFATO. O cheiro era tão forte que me cegou. O que eu estaria fazendo num banheiro público de rodoviária? Um insuportável odor de urina velha, aquecida, em crostas ressecadas entrou por todos meus poros. Sentia o cheiro dos donos das urinas. Das botas que as pisotearam com o tempo. Do próprio tempo apoiando todo processo de fermentação de bactéria entre as inúmeras cabines... Então abri os olhos.
VISÃO. Eu estava no banheiro do meu quarto. O pequeno vaso sanitário azul. Um sabonete meio gasto sobre a pia na habitual posição horizontal. A toalha pendurada com meu nome escrito na etiqueta. Meu chuveiro com aquela mania de acumular três gotas antes de caírem. Algumas gotas de urina do dia sobre a tampa. Não precisava nem voltar pela porta para encontrar meu quarto, de onde eu devia ter acordado no meio da noite, com aquela costumeira vontade explosiva de urinar.
Mas a primeira sensação fora tão real. Por que diabos eu nunca ouvi as pessoas que desde sempre gritavam para que eu levantasse a tampa do vaso para não errar o alvo? DROGA! Nunca vou aprender a fazer isso direito. Condenado a viver num lugar com cheiro de aterro sanitário “ESPEEEERE!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!” A mensagem martelou me num flash interminável. Minha têmpora latejava. POR QUE VOCE ACHA QUE ESTÁ EM SUA CASA? POR QUE SÓ CONFIA NA SUA VISÃO? E SE ESSE NÃO FOR O SEU BANHEIRO?OU O FOR APENAS EM PARTE? VOCÊ É SÓ GRANDE OLHO? Você apenas VIU um lugar, mas CHEIROU OUTRO LUGAAAAR
Fechei os olhos. Respirei. RODOVIÁRIA.
Segurei o fôlego. Abri os olhos. MEU BANHEIRO.
Fechei os olhos. Respirei. RODOVIÁ... Eu estava afogando.
Medo da porta às minhas costas. Medo do espelhou ao meu lado. Medo da insanidade à espreita. Onde eu estaria? Captava diferentes realidades e só então, só então percebi que não podia me ater à só uma. Agora eu escapava das correntes e fora pego no flagra. Rastejava por uma pequena brecha na enorme e falsa fortaleza da realidade. Apurei os ouvidos.
AUDIÇÃO. Água corrente. Uma enorme massa de água corrente e feroz. Um rio com queda rápida despejando intermináveis turbilhões. Ouvi que bolhas eram formadas e desfeitas, formadas e desfeitas com a mesma velocidade. Ouvi o silêncio de derrota do vento, na batalha perdida pra quebrar a superfície da água. Ouvi que por milhões de quilômetros quadrados, eu estava sozinho. A calma é cortada pelo grito de um bebê, mas na verdade é um homem com voz de bebê. Não sabia de que forma eu estaria vivo no meio de um rio. Eu ainda era humano? Eu ainda ERA QUALQUER COISA? LUGAR ainda existia além do TEMPO?Minha bexiga explodia. A correnteza começou lutar para reverter seu curso e subir. Uma força sobrenatural estava sendo feita, lutando contra a natureza. Tudo doía até que senti um estalo enorme e abri os olhos.
Eu estava levantando meu braço dolorido e caindo, vagarosamente, com as mãos em direção à parede de azulejo branco...
TATO. A parede era cascuda. Pequenos galhos secos despontavam em todas as direções. Circundei em segundos seu diâmetro redondo. Aquilo não era uma parede. Com as duas mãos apalpava incansavelmente para cima e para baixo, tentando mensurar o comprimento daquela árvore. Olhos fechados. Ouvidos fechados. Nariz fechado. Para cima, para baixo. Deve ser muito alta, espremi a mão contra uma vilosidade e AI! Cortei o dedo direito. Voltei então o foco para minhas pernas. Eu pisava sobre um gramado fofo que crescia num terreno arenoso com pequenas erosões. Com a ajuda da ponta do pé esquerdo, tirei o direito do sapato e enfiei na areia para sentir melhor. As folhas causavam cócegas e o pé ia afundando prazerosamente até eu perceber que aquele era uma clareira perfeita para urinar. Justamente o tipo que eu escolheria se me visse longe de um banheiro, no meio de uma pequena mata.
A sensação de esvaziar a bexiga foi divina. E ao mesmo tempo profana. Ouvia água correndo e prolongando aquele momento. Sentia a árvore à minha frente, e o solo que rapidamente absorveria aquele líquido. Então me veio um cheiro fortíssimo de mais urina se acumulando num pavimento de chão velho. Abro a boca e de lá sai um grito, mas com voz de bebê, caindo em alguma dimensão do passado. VOCÊ NÃO PODE URINAR NA PAREDE! “CALA A BOCA, EU ESTOU NO MATO!”.
A festa dos sentidos que se bicavam, se entrelaçavam, lutavam, amavam e se despediam ao mesmo tempo foi enorme, até que eu me senti totalmente vazio.
Minha urina escorrendo pelo piso. Água do rio inundando meu banheiro. Urinava num rio. Minha mão latejava com o corte de um galho. O fragmento do galho, ainda lá dentro, coçava até sangrar. Ouvi o silêncio. Cheirei o medo. O medo era escuro e bateu no contra meu estômago. Três gotas no meu chuveiro caíam. PLASH. Um homem perigoso de jaqueta preta saía da cabine. Mas o cheiro da nova urina me atingiu antes. O sangue chegou ao começo do meu pulso, mas o rio o lavou para longe. Sangue no sabonete. Sabonete com urina e sangue. Abre olhos. Prende respiração. Bate com as mãos. Pisca. Ouve o sangue. Sangue escorrendo nas paredes, sangue no espelho. Caio de joelhos no chão e tudo se congela...
DEUS! EU SÓ QUERIA ME ALIVIAR À NOITE. COMO VIM PARAR AQUI?
Silêncio. Silêncio. Eu estou secando, pois lágrimas caem dos meus olhos, e volto a cabeça para cima. Deveria haver anjos lá em cima, vindo para me resgatar, mas o pedido de resgate extraviou-se e eles nunca vieram. Abraço meu próprio corpo e começo a tremer, percebendo que posso me desintegrar a qualquer segundo. O medo arranca sua enorme pressão sobre o meu estômago. Uma ânsia desferida pelo golpe me sobe à garganta. Meu estômago estava vazio, mas ainda assim algo amargo parece esperar por minha chegada.
PALADAR. Os anjos não vieram. Tudo é calmo e infernal. Um zumbindo que nunca morre. Pisco pela última vez e a imagem do meu vaso sanitário lampeja por segundos na minha mente, onde parece haver algo podre se contorcendo. Quase desisto, achando que nada é real, entregando-me... Então uma vontade súbita de viver toma e me guia. Abro a boca o máximo que posso e, com a língua esticada a ponto de se romper, louco para descobrir onde realmente estou, e se ainda sou, inclino minha cabeça em direção ao conteúdo incerto e nebuloso no centro do meu suposto vaso sanitário.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

viagem de natal - 2009 conto

SMELLS LIKE CHRISTMAS

-Por favor, quanto é a coxinha?
- São quatro reais.
- Que? Tá, feliz natal pra você.
- Ei, espera aí, não vai levar a coxinha não?
- Nem fudendo!
Já era tarde da noite. Olhei a tabela de preços atrás do balcão só pra confirmar e amaldiçoei a lei da oferta e da procura. Tentei pensar em alguma forma de boicote que todos dali poderiam realizar pra que os preços caíssem, mas logo me entediei e me perdi. De qualquer jeito eu não pagaria mais do que 2,50 num salgado estragado. Se me perguntassem o que eu sou, diria que sou um farejador. Não de coisas materiais. Mas não se precisa ter um bom faro pra saber que aquelas coxinhas estavam estragadas.
Terminei com a garrafa d’água pra enganar o estômago e abri minha carteira atrás do cartão telefônico. Pensei que seria muito gentil d a parte do cara que roubara meu celular há um mês, me dar alguns cartões telefônicos pra consolo. Mas já estava feliz por ele não te me esfaqueado.
Por fim o cartão estava zerado. Uma moça loira com aparelhos que tentava ser simpática me vendeu um novo com vinte unidades nessas lojinhas de variedades de rodoviária. Esperei numa fila até chegar minha vez de usar o telefone e nada. A ligação era cortada assim que alguém atendia o telefone em casa. Voltei marchando enfurecido para a lojinha esbarrando em dezenas de pessoas no contra-fluxo, pessoas no mesmo fluxo, e pessoas perdidas. Uma pré-adolescente com camiseta do NXZERO ainda me encarava naquele banco laranja. Tive vontade de perguntar qual era o problema dela, mas ele já estava estampado em sua roupa.
- Não ta funcionando! – Gritei por cima de várias cabeças, olhando pra moça loira e chacoalhando o cartão telefônico.
- CULPA É DO ORELHÃO. A CULPA É... – quem gritou de volta foi uma senhora sentada atrás do balcão.
- Droga. Não tem algum cartão de outra marca? Você sabem algum outro lugar que eu posso ligar para outro esta...
- CULPA É DO ORELHÃO! A CULPA É DO ORELHAO! A CULPA...
Parei de chacoalhar o cartão e puxei a moça loira para um canto antes que ela atendesse uma família de japoneses.
- É o seguinte. – Sussurrei com ar preocupado. Eu estava preocupado. – Tô sem meu celular aqui e preciso ligar pra casa, avisar o horário que vou chegar. Esses orelhões não tão funcionando de jeito nenhum. Por favor. – E aqui eu forcei ao máximo uma cara de dor e piedade. – Por favor, não teria como você me emprestar um celular desse estado pra eu fazer uma ligação a cobrar?
A moça continuou com seu jeito simpático, e seus lábios se abriam para salvar minha noite quando, do meio do nada, a senhora reapareceu, empurrou a menina pro lado e esgoelou na minha cara.
- CULPA É DO ORELHAO. A CULPA É DO ORELHÃO! TCHAU PRA VOCÊ!
Ótimo. Agora eu estava incomunicável. Teria realmente que acordar meus pais e o velho cachorro no meio da noite quando chegasse em casa. Total falta de consideração com os problemas de coração do velho. Mas se ele resolvesse sacar a pistola pra proteger a casa, pobre do meu coração.
Não que eu culpasse aquela senhora. Afinal quem emprestaria um celular pra alguém no meio de um mar de gentes, onde furtar e correr seria a coisa mais fácil? Então botei a culpa naquele mar de gente.
Naquela rodoviária havia gente de todo o tipo. E naquela noite em especial traziam apenas uma coisa em seus semblantes: pressa. Apenas alguns conversavam animadamente, sobre a família que iria rever em breve ou os planos pra semana. Mas o que a maioria queria mesmo era se mandar. Todo natal a mesma história, a mesma correria de última hora. E não que eu pudesse reclamar já que estava ali, mas minhas últimas provas eram realmente inadiáveis. Mas tudo bem, em segundos embarcaria num ônibus. E em poucas horas estaria em casa. Apertei a mochila sobre as costas e fui até a plataforma esperar o ônibus que já devia sair quando um painel piscou sobre minha cabeça. Li a mensagem de boca aberta. Então fechei a boca. Mas a mensagem não sumiu. Li mais cinco vezes e resolvi me convencer. “TODOS OS ÔNIBUS DAS PLATARFORMAS 8 A 20 LEVAM ATRASO DE TRÊS HORAS”.
Virei desesperado para analisar o que eu teria que enfrentar agora. Uma rodoviária em formato circular. Banheiro sujo. Comida de quinta e cara. Pessoas. Pessoas. Pessoas...
- Sou diretor do orfanato Raio de Luz. Preciso urgentemente levar as encomendas de todas as crianças. Não posso esperar, você não entende. Não tem algum carro extra que faça essa viagem? Qual é, sei que o senhor motorista pode dar um jeito de desviar um pouco a rota e me deixar por perto. O natal dessas crianças depende de mim!
Analisei em milésimos de segundos todas as expressões no rosto do motorista. Tudo bem, fora uma idéia péssima. Mas o máximo que eu poderia ganhar seria um não. Um diretor tão jovem? Achei até que daria certo, se eu não tivesse forçado tanto na última frase! “O natal dessas crianças depende de mim?”. Caralho, que coisa estúpida de se dizer. Então a resposta veio.
- Tá, cai logo fora desse ônibus e me diz quem você é.
Pulei os degraus pra fora sem outra alternativa e sem dizer nada, mas refleti sobre a pergunta. Quem eu era? Se me perguntassem o que eu sou, diria que sou um farejador. Não de coisas materiais. Sinto que até o curso de minha faculdade fora escolhido pra mascarar, enterrar essa minha maldição que minha tia Rosa insiste em chamar de presente divino. Afinal trabalhando com finanças a vida toda, não teria jeito de sentir o cheiro dos números. Ou teria?
Pode parecer ridículo. E quando penso nisso à luz do dia, saindo da academia ou da padaria parece ainda mais ridículo do que agora. Mas sou um farejador de auras. Posso saber se algo ruim vai acontecer, ou se algo muito, muito ruim vai acontecer. Como toda manifestação estranha sobre a qual pesquisei desde minha adolescência, essa possível “habilidade” não é controlada por mim. Ela simplesmente se manifesta quando quer. Ás vezes num sábado à tarde, quando o que mais quero é apreciar uma última lata de cerveja, ligar pra vizinha maravilhosa e talvez ouvir alguma música antiga no rádio. O que eu posso controlar é o direcionamento do processo de farejar uma vez que ele começa. É algo difícil de explicar, mas é como se eu pudesse explorar a gravidade da situação só por fazer uma cara estranha. Tento mensurar espiritualmente, se posso assim dizer, os limites da situação. Até onde pode ir, quanto tudo irá me chocar. Ou, até mesmo, se aquilo poderá me matar.
Acabei pensando em mim como esse “farejador” por causa da sensação estranha que começa pelo nariz sempre que prevejo algo ruim. Não é apenas um sexto sentido, é como se tudo se materializasse em um cheiro de acre velho e estonteante. Um cheiro que na maioria das vezes me eleva a um estado de estupor e embriaguez que nenhuma bebida poderia proporcionar. Tal fenômeno raramente se manifestou em lugares públicos, mas as poucas pessoas, todos familiares, que já me viram no meio desses transes dizem que minha cara parece se configurar por um tempo. É como se outra pessoa assumisse meu lugar. E que sim, eu mecho incessantemente o meu nariz. Até que ele sangra, e tudo para.
A primeira vez foi aos cinco anos. Lembro da casa em que eu morava. Lembro do gato de minha mãe, que miava sempre que chovia e se enrolava em todos os bordados que ela tentava fazer. Lembro das pedrinhas em frente ao jardim de roseiras. Especialmente das pedrinhas azuis, as que pulavam mais alto quando eu jogava por sobre o muro do vizinho. Acho que as coisas mais insignificantes são as coisas que mais ficam em minha cabeça. Lembro de um homem de preto que me olhou sem parar por trás do portão e da expressão demoníaca em seu rosto. Tenho pesadelos com isso até hoje.
Meus pais eram donos de uma mercearia especializada em queijo, um ramo muito conhecido pela família da minha mãe que crescera numa fazenda, aprendendo todo o processo de fermentação do leite e derivados. Isso fora logo depois da crise da bolsa de automóveis, que demitira mais de um milhão de funcionários de longo prazo em todas as concessionárias do país, entre eles estava meu pai. Seria com aquela mercearia que ele voltaria a ganhar algum dinheiro que pudesse pagar a conta de luz, depois a de água, e por fim crescer até um estado em que já pudesse respirar aliviado ao fim do mês até ele voltar ao ramo automobilístico. Há dois anos a mercearia foi vendida para uma cadeia de mercados que abriu uma franquia na cidade, e foi com o dinheiro dessa venda, uma ótima venda aliás, que meus pais puderam me matricular na faculdade.
Lembro que era um dia quente pois eu furtava vários sorvetes do estoque de frios da mercearia. Naquela tarde em especial a temperatura estava nas alturas. Chamei um dos meus amigos e fomos até o freezer com dois potes, esperando enfiar ali quantos picolés coubessem. Na próxima memória que consigo acessar eu já corria, sozinho, com o meu pote de sorvete pra casa. Voltava correndo olhando pra todos os lados, um misto de alegria e culpa se entrelaçavam em meu corpo e à medida que eu me aproximava do meu quarteirão, o pote parecia cada vez mais leve, e a sensação de culpa diminuía quando pensava em todo aquele sorvete que estaria me esperando. Fechei com força o portão e agarrei uma pedra azul, pronto para arremessá-la só para não perder o costume. Então senti o cheiro... A pedra escorregou de minha mão. Pulou apenas uma vez e parou, intacta. O pote de sorvetes caiu de minha mão e se espalhou pelo o chão. Talvez algo em minha mente tenha gritado para que eu o juntasse, mas nada mais se movia em meu corpo. Eu senti o cheiro, e então eu soube.
Fechei os olhos, uma das únicas ações que me restou, e senti que algo arrastava meu corpo, mas apenas em meu pensamento. Enxerguei-me no escuro, enquanto um caminho se iluminava em minha frente. Era apenas eu num deserto escuro e uma única direção a seguir. O cheiro de madeira velha era insuportável. Senti meu nariz coçando como se uma abelha rainha o tivesse picado mas tinha medo de tocá-lo. Algo como uma dor de dente, uma daquelas que chega a tocar a alma, se espalhasse por toda minha mandíbula e logo em seguido se transferisse pra minha espinha dorsal. Como eu disse fazia um dia muito quente, mas sei que nunca mais senti um frio tão gélido e arrepiante como o daquele momento.
Tive vontade de gritar, pedir socorro, chorar. Por dentro eu já gritava, eu não era mesmo o mais corajoso da turma, mas aquela sensação dobraria qualquer um, disso eu não tenho dúvida. Naquela primeira vez em que aquilo aconteceu tudo era novidade, e eu me encontrei sem nenhuma dica do que fazer pra amenizar a situação. Depois de alguns anos desenvolvi muitas técnicas, algumas vezes sou até capaz de fechar essa ligação especial com seja lá o que isso for. Mas não daquela vez. Eu estava no escuro, o caminho era único, e eu fui arrastado brutalmente.
Ouvi o choro do gato de minha mãe. Mas um sentimento incontrolável de penas me fez pensar nele como “meu gato”. A coceira no meu nariz aumentou. O choro do gato ia ficando cada vez mais agudo, e eu nada podia fazer. Então vi sangue, não com os olhos, mas com o nariz. Não apenas senti o cheiro de sangue, pelo nariz consegui enxergar o sangue. Era vermelho vivo, espesso, e se espalhou pelo chão com um barulho ensurdecedor, como uma cachoeira. Então o cheiro forte chegou a um nível tão alto que eu desmaiei. Tendo como única certeza o fato de que nosso gato estava morto.
Depois disso passei uma semana de cama, doente e com uma febre que teimou para ir embora. Tentei contar tudo o que eu sentira, mas era demais. Um farmacêutico amigo de meu pai dizia que eu devia ter me traumatizado por encontrar o animal naquele estado, mas deveria melhorar logo. Assim como minha mãe, que ficou de luto por quase um mês e não teve nem força pra dar uma surra no assassino, um menino de rua totalmente louco que morava num casebre de esquina. Apenas escreveu uma carta para a mãe do garoto dizendo que era melhor eles se mudarem pra evitarem “futuras confusões”. De qualquer jeito a mãe do menino o levou com ela em menos de uma semana, quando partiu atrás de seu ex-namorado traficante. Mas as lembranças da brutalidade continuaram.
Pelo relato que conseguiram colher o muleque havia tido mais um de seus ataques psicóticos quando saíra de casa. Pulou o muro de nossa casa por trás e aproveitando que estava vazia comeu toda carne que havia na geladeira. Foi então que deve ter visto o gato. E também a faca de queijos em cima da mesa. Os sete furos feitos no corpinho do gato ainda vivo, inclusive em sua cabeça, atravessavam-no de um lado a outro. A parede de armário se ensangüentou por inteira, não havendo quase um lugar sem resquícios de sangue.
Alguns anos depois do ocorrido eu ainda tinha a certeza de que aquele cheiro único que me ocorrera já vinha do corpo massacrado do gato. Era sem dúvida o cheiro da morte. Até que ele voltou dois anos depois, quando a plantação de trigo de meu avô foi arruinada pela geada.
O mesmo cheiro quando meu primo Renato, embriagado, bateu o carro num poste, ficando paraplégico. O mesmo cheiro quando a casa da vizinha ficou em chamas por causa do gás que esquecera ligado. O mesmo cheiro quando a empregada fugiu com todas as jóias de família da minha mãe. O mesmo cheiro quando minha irmã quase morreu afogada na praia, puxada pela correnteza. O mesmo cheiro que eu senti há um mês segundos antes daquele cara me abordar com a faca, exigindo que eu passasse o celular. Madeira, madeira velha e estonteante.
Posso ser um farejador, pensei novamente, mas de nada isso vai me adiantar nessa rodoviária lotada e fedida. A não ser pra cheirar aquelas coxinhas estragadas, obviamente.
Sempre que me encontro em alguma situação desconfortável e começo a ficar com sono minha capacidade de me irritar com tudo aumenta, então fiquei parado na frente de uma banca de revistas enquanto todos se movimentavam de um lado pro outro e tentei pensar em coisas piores que pudessem acontecer. Bom, o teto poderia desabar. Isso atrasaria a viagem por dias. Não que isso não pudesse acontecer, atrasos em épocas como aquela deviam ser inevitáveis. Uma péssima notícia pra todos que dependem de transporte público pra longas distâncias. Uma péssima notícia para mim.
Corri com passos largos quando vi uma das cadeiras laranjas vazia por um instante e sentei ofegante, sem nem olhar pra quem tava do meu lado, antes três horas sentado do que em pé. Por alguma ironia percebi que estava na frente do bar das coxinhas, e o preço parecia ter aumentado. Fiquei sem alternativa a não ser olhar pras pessoas comerem.
Tenho uma síndrome que me acompanha desde que desenvolvi consciência. Uma síndrome, possivelmente suicida, de encarar tudo aquilo que me irrita ao invés de desviar os olhos. Provavelmente é algum desejo de me irritar a um ponto de aprender a um dia desviar os olhos, mas por em quanto eu ainda não aprendi nada. E percebi isso assim que botei os olhos em dois malandros sentados numa das mesas e bebendo cerveja, rindo com a boca cheia, provavelmente nordestinos. Não gosto de pensar em mim como preconceituoso, só não conseguia aturar esse tipo que grita alto e bebe cerveja numa rodoviária numa véspera de natal. Observei-os por um bom tempo quando notei neles uma empolgação estranha e olhei para onde eles apontavam. Vinha uma loira incrível, provavelmente a miss rodoviária. Não que fosse muito, mas pra eles seria o espetáculo principal do circo, e era óbvio que eles a provocariam de alguma maneira. BINGO!
Ela veio deslizando e eles começaram a cochichar rápido. A obviedade da atitude deles me irritava cada vez mais, e assim que ela passou arrastando a mochila um deles se levantou e se propôs a ajudar. Sem perceber nenhuma má intenção ela aceitou o convite pra se sentar com eles, meio tímida, e cruzou o braço sobre o colo.
“E agora eles vão...”. Jogar algo no chão, é claro. E ela se abaixou pra pegar, e eles arrancaram uma máquina fotográfica de alguma lugar de baixo de suas blusas e tiraram uma bela foto da traseira da moça, gargalhando sem disfarçar.
“Idiotas”.
“Patético”. Disse um velho.
“Sim, patético seria um bom...”. Olhei pro lado e percebi a quem eu respondia. Havia um velho sentado ao meu lado, não sei há quanto tempo acompanhava a cena. Mas então não soube mais se ele se referia aos rapazes ou ao jornal aberto em seus braços.
‘’Patético toda essa onda de rádios, estão contaminando a atmosfera. Eles acham que está tudo bem, eles e seus discursos evolucionistas, pró-modernistas. Vamos esperar, vamos esperar que tudo desabe, não vai demorar muito...”.
Ele continuou a resmungar lamúrias incompreensíveis e então eu tive medo de acompanhar. Sempre tenho a impressão de que começo a entender diálogos que não deveria entender, então me desconcentro antes que tenha certeza de minha insanidade. Mas ele continuou falando e eu ainda incerto se ele falava comigo ou consigo mesmo. Tomei uma atitude ativa-passiva, que desse possibilidade a uma dupla interpretação e continuei ao seu lado, balançando a cabeça de segundos em segundos. Então foquei em seu jornal e meu estômago deu uma volta. O jornal datava de 8 de janeiro de 2010. Estávamos no início da madrugada de 24 de dezembro de 2009. Havia uma mancha negra no meio da página, que se espalhava e se ramificava em pequenas raízes. Algumas palavras saltaram aos meus olhos: “epidemia de vírus, madrugada dos mortos, madeira velha”.
O velho segurou a ponta da página principal e estava prestes a vira-la quando me levantei num salto, algo gritando que eu devia correr antes de ver o que vinha a seguir. Mas fui segurado pelos seus olhos.
Ele me encarou por um longo momento e eu fiquei em transe. Então seu rosto se abriu num sorriso banguela e eu consegui me libertar, sai com minha mochila batendo num ritmo descompassado. Mas a mensagem dele ainda estava em minha cabeça. Alguma mensagem telepática fora transmitida. “Hoje não. A cura chegou”.
Parei ao lado do banheiro e senti que minhas pernas tremiam. Eu estava quase pulando quando percebi que uma fila começava a se formar atrás de mim, então saí dali ainda a tempo de ouvir alguns nomes ofensivos que me gritavam.
- Ei! Rapaz, por favor. Você pode ficar aqui com minha filha enquanto vou ao banheiro?
- Ein? Bom eu só...
- É bem rápido. Ela tem que ficar pra sinalizar caso o papai passe, ele deve ter se perdido na hora do desembarque. Eu já volto num minuto...
- Ah sim, tudo bem. – Mas ela já entrara no banheiro e me deixara de mãos dadas com uma criatura que batia nos meus joelhos.
Era uma menininha com vestido verde e cabelos enrolados. Aparentava uns cinco anos e fez uma careta assim que olhei pra ela. Estiquei os olhos e a careta dela se intensificou. Mas acho que significava algo bom, porque ela sorriu.
- Sua mãe já vem.
- Tá bem. Eu ganhei dois brinquedos hoje. E amanhã vou ganhar a mariposa que voa.
- Legal. – Disse sem prestar atenção. Minha mente já estava voando.
Fazia o calor de dezembro. Aquele que te faz pingar assim que se sai do banho, mas mesmo assim senti uma brisa estranha que vinha de uma porta automática que estacionara no modo aberto há alguns metros. Fazia quase um ano agora que eu não tinha mais uma premonição. Nenhum cheiro viria. Não considerei aquilo como um sinal de libertação, eu já tivera intervalos maiores anteriormente. “A cura chegou”. Coisas da sua cabeça, rapaz, coisas da sua cabeça.
Um ronco na minha barriga denunciou a digestão atrasada do meu almoço magro, a última refeição do dia. Precisava comer logo. Olhei pro relógio e vi que agora só faltavam trinta minutos pro meu ônibus chegar. Assim que eu estiver em casa almôndegas, pensei. Almôndegas com queijo, e se eu tiver sorte um pedaço adiantado de pernil.
Num instante achei que tinha piscado. Então veio a escuridão. A menina apertou minha mão forte. Houve alguns gritinhos de entusiasmo e a rodoviária estava mergulhada no negrume. “MERDA DE HIPERLOTAÇÃO!”. Ouvi uma voz grossa bradar. “LIGUEM O GERADOR”.
As pessoas cochichavam e falavam alto. As únicas luzes vinham agora de alguns ônibus que partiam. A bobina vermelha que girava acima da porta automática foi se apagando lentamente até sumir. Eu havia estudado sobre esses tipos de apagões repentinos, comuns quando a energia começa a trabalhar além de sua capacidade máxima ao comportar muitas pessoas. Excesso de carga funcional.
- O que aconteceu? – Percebi o tom de voz assustado da menina.
- Excesso de car... A luz acabou, mas já volta, só isso. – Tentei passar confiança, sem saber ao certo quão logo isso ocorreria, e desejando que isso não significasse mais horas de atrasos nas próximas partidas.
As pessoas pareciam agora se mover de vagar, aglutinando-se em pequenos grupos conhecidos e falando em tom de voz baixo. Manifestação típica acompanhada de euforia em momentos como aquele. Algumas crianças começavam a chorar, outras gritavam felizes. “MAMÃE, O PAPAI NOEL CHEGOU?”.
“FILHA?” – Ouvi a mulher gritando do banheiro.
“MÃE?”- A menina respondeu num tom duvidoso.
“A porta ta emperrada, mas a mamãe está aqui do lado. Assim que a luz voltar eu vou e...”.
Ela ficou confortando a filha aos gritos, e eu fiquei ali naquela posição ridícula, ao lado do banheiro feminino, servindo de intermediador entre as duas. Dez minutos se passaram e ainda não havia luz. Desejei que aquela mãe saísse logo e viesse buscar a filha antes que meu ônibus chegasse. Então percebi que já não havia mais dialogo, as duas se silenciaram.
Não apenas as duas, mas aparentemente todo aquele lugar. Meu ouvido zumbia, mas devia ser pelo barulho a que estava acostumado. Olhei ao meu redor pra ver o que acontecia, mas não percebi nada de diferente.
Então os grupinhos começaram a se separar. Uma onda de excitação pareceu correr o lugar e tocar meu corpo. As pessoas começaram a se mexer lentamente. Eu distinguia apenas sombras, altas e baixas, indo à mesma direção com olhares curiosos. Algo devia ter ocorrido a minha direita e um fluxo já se acumulava na entrada de um dos terminais.
Aquilo me lembrou as procissões religiosas as quais minha tia Rosa me levava à força durante a infância. Ondas de pessoas em passos sincronizados e silenciosos, a sensação de estar no fim do universo.
A menina murmurou algo, mas eu não consegui ouvir. Ela continuou murmurando e quando pedi pra que falasse mais alto ela fingiu que não me ouviu. Então me abaixei e fiquei próximo a sua face, até que a ouvi dizer pela última vez: “Madeira podre. Madeira velha”. E coçou o seu pequeno nariz.
Todos ao meu redor coçavam o nariz enquanto andavam em minha direção. Senti um pânico súbito, mas a multidão continuou passando por mim e seguindo o fluxo à direita. Era um balé colossal e hipnótico. Ouvi pessoas reclamando do cheiro. Mas eu não conseguia sentir nada. Respirei forte por três vezes e não senti nada além do cheiro do café mentolado da máquina de expresso. Uma senhora desabou na primeira fileira dos bancos laranjas, e ninguém se prestou a ajudá-la. De dentro do banheiro ouvi um ruído, como alguém raspando as unhas na parede. Então olhei para baixo e percebi minha mão balançando-se contra minha perna. A menina não estava mais ali.
Queria pedir informação para qualquer um, mas a idéia do que pudesse ouvir era muito assustadora. Pensei estar num pesadelo, mas as pernas trementes reafirmavam a realidade pavorosa daquela situação.
Com cuidado para não trombar em ninguém, comecei eu mesmo a marchar na mesma direção que todos, que parecia também ser a saída mais próxima dali. Queria alcançar a rua o mais rápido possível e ligar para alguém. As pessoas continuavam a coçar o nariz. Algumas espirravam. E dessa vez era eu quem não sentia nada. Andei com passos trêmulos e vagarosos, com medo de quebrar a sintonia daquele exército de sonâmbulos à minha frente, e abri lugar entre a multidão até me encontrar na frente dela.
Encontrei-me parado com vários outros ao meu lado, de frente para uma plataforma de ônibus vazia. Não precisei olhar novamente a passagem para saber que aquela deveria ser a plataforma do meu embarque. Ninguém ainda dizia nada. Então uma luz ambulante no meio da escuridão começou a virar a rotatória e vir em nossa direção. Desejei ver um carro de polícia trazendo um novo gerador elétrico, mas meus olhos não tentaram me enganar.
Um ônibus alto vinha deslizando à 3 por hora pela contramão. Era quase impossível perceber seu movimento, mas à medida que ele se aproximava pude ver o estado em que ele se encontrava. Não havia nenhum slogan que denunciasse sua empresa. Tinha uma lataria velha e toda raspada, o único brilho vinha de suas lanternas da frente, verde e vermelha. Parecia estar amassado e não possuir nem mesmo calotas. Gramas na lateral de uma espécie de planta roxa que eu nunca via, temia pensar por que dimensão aquele veículo estava vindo. Continuou em seu deslizar lento e parou na plataforma de embarque.
Todos continuaram ali parados, sem demonstrar a mínima reação àquela estranha chegada. As janelas do ônibus estavam embaçadas por dentro. Lá dentro uma névoa parecia ter se formado, impossibilitando qualquer forma de visão pela frente. Então a porta do ônibus se abriu com seu guincho costumeiro, como se fosse apenas um automóvel esperando para desembarcar e embarcar novos passageiros numa viagem de fim de ano. A única diferença era que, com a brisa que entrou no ônibus, a janela se purificou um pouco e foi possível ver o acento do motorista, onde devia estar aquele que abrira a porta, vazio.
A única coisa que senti foi uma lufada forte e quente que saiu do veículo e bateu direto em meu rosto. Era o cheiro da morte. Nada que eu pudesse descrever em termos de sensações, apenas o cheiro da morte.
Então um passo lento começou a se desenvolver no ônibus, alguém se movimentava. Acredito ter visto figuras estiradas nos bancos dos passageiros, imobilizadas de forma cadavérica, e uma sombra lânguida caminhando para a porta. Então vi uma perna aparecer no primeiro degrau. Depois no segundo, terceiro, e finalmente desembarcou.
Era uma mulher. Ela vestia uma túnica e carregava no rosto uma expressão de dor que nenhum ser humano seria capaz de reproduzir. Em seus braços havia um embrulho ensangüentado. Ela começou então abrir os braços, e eu soube imediatamente o que veria. Fechei os olhos levando apenas uma primeira imagem daquele bebê todo retorcido em sangue. Ouvi um guinchado de dor, mas não fiquei para reconhecer o dono. Sai correndo assim que comecei a vomitar.
Empurrava as pessoas, que continuavam em transe, e voltei pra dentro da rodoviária. Corria como nunca, não mais segurando o vômito, apenas rezando pra que nenhum órgão vital saísse pela minha boca.
ERA NATAL. HAVIA UM BEBÊ MORTO NUM MANTO. A CURA DEVIA TER CHEGADO.
Corri mais rápido na tentativa de dissipar os pensamentos de minha mente, não queria analisar nada. Pareceu dar certo. Saí daquele lugar e lá fora a vida parecia continuar normalmente. Atravessei a rua ainda deserta e só parei há duas quadras. Vi um jornaleiro acelerar em sua moto e arremessar as primeiras entregas do dia. Ouvi uma música pop que vinha de algum prédio. A primeira luz do dia deveria sair em questão de minutos.
Esperei até que um taxi passar e quando percebi já estava sentando no banco de trás, com a respiração acelerada e um gosto de bile amargo ressecando na boca.
“Para onde vamos?”. Perguntou o taxista.
Eu ainda encarava minhas mãos trêmulas. Para onde iria? A chave de meu apartamento estava com a síndica e ela já havia partido pela manhã. A Katia e o Moura não acordariam de jeito nenhum. Eu não tinha mais nenhum outro amigo naquela época na cidade. Teria que me dirigir à única lan house que funcionava 24 horas, paralela ao mosteiro São Bento. Iria pra lá, comeria alguma coisa, entraria na internet e esperaria as primeiras notícias chegarem. Parecia algo sábio a fazer. Eu estava sendo racional.
“ Ao mosteiro São Bento, por favor”. Respondi levantando a cabeça e encarando o motorista pelo retrovisor.
Por ali uma figura seca me encarou de volta. Ele estava vestido todo de preto e, sem mais identificações, consegui distinguir apenas uma expressão demoníaca em sem rosto. Um filete de sangue escorreu pelo meu nariz.